"Eita! Minha irmã é escritora!" Foi o que eu disse num susto danado e em voz alta quando abri o caderno e vi na primeira página as letras graúdas “O AMOR SUPERA TUDO” e embaixo a assinatura dela.
Uma surpresa feliz, acompanhada do medo de ser pego no flagra com o caderno na mão, ou melhor, com o livro na mão. Aproveitei o embalo da ousadia e folheei a obra, olhei o sumário, as frases que estavam no início dos capítulos e as informações sobre a autora na ultima página do caderno, digo, do livro.
Como eu queria descrever o que senti naquele momento, mas teria que inventar um buquê de palavras com pétalas de entusiasmo, mas ainda não sei idealizar uma coisa tão bonita assim.
Era a primeira vez que conhecia de perto uma escritora, tamanha era a emoção, porque se tratava da minha irmã. É como se meu mundo entrasse num pula pula.
Mas pra confirmar a minha suspeita, retornei à capa do caderno, um caderno comum, de capa dura com arame, porém no seu interior ao que tudo indicava era a descrição de um livro.
Antes de dar continuidade, devo admitir que esta crônica é sobre um segredo, uma memória guardada a oito chaves. Sim, 8 chaves, porque até hoje minha irmã não sabe disso. Nunca contei isso nem para as pessoas mais próximas. Vocês são os primeiros a quem estou contando.
Mas já que resolvi contar tudo ou quase tudo, voltemos ao final dos anos 90. Morávamos numa casa bem simples. Um vão da casa se desdobrava e formava outros ambientes. No meio de um dos cômodos havia uma cortina que o dividia em dois cômodos. De um lado, a cozinha; do outro, um quarto, que era compartilhado comigo e com mais dois irmãos.
Voltando ao tal segredo. Acho meu irmão também não sabe deste acontecimento, ou melhor, do segredo. Pois ele dormia no andar de cima, num beliche que dividia com minha irmã. Eu, caçula, ficava ao lado numa cama de solteiro. Por isso era mais fácil ficar atento aos acontecimentos.
Devido à falta mais de compartimentos na casa, éramos convidados a dormir no mesmo horário. Então, quando chegava o horário de dormir, todos iam ao mesmo tempo. Assim o aconchego do escurinho ficaria melhor pra todos.
Meus pais cansados da rotina do dia, logo pegavam no sono; meu irmão, a mesma coisa. Por um tempo eu também era assim, mas vi que algo diferente acontecia. Depois de uns 10 minutos eu via um clarão no quarto como uma ideia luminosa que vem e se desmancha em voos de revoada.
Minha irmã acendia uma vela, mergulhava a mão no porta travesseiro e retirava seu kit de trabalho, o caderno. Também pegava uma caneta que ficava entre as madeiras do telhado do beliche, e mãos a obra.
Essa cena se repetia todas as noites. Ela ficava horas e horas escrevendo e eu atento, fingindo ser um dorminhoco. Havia momentos que ela parava - ficava olhando para o teto, vela e vão escuro do quarto - como se quisesse encontrar uma semente de palavra para plantar no caderno.
Após o expediente, ela guardava as ferramentas de trabalho (caderno, caneta e vela) para o próximo dia, ou melhor, noite. Meu Deus! Eu não estava mais aguentado de tanta curiosidade e várias perguntas circulavam em meus pensamentos. O que tanto ela escrevia? Era um segredo tão segredo assim pra rodar a máquina de datilografia só à noite?
Teve um dia que todos saíram de casa, então falei: é hoje que vou descobrir o segredo de tantas palavras escritas num caderno. Fui direto à gaveta do travesseiro, coloquei a mão, e nada. Olhei debaixo do lençol, também não. Logo pensei, deve ser alguma história cabeluda. Levantei o colchão e lá estava o mesmo caderno que todas as noites ela usava para escrever.
Passei os olhos em todas as páginas e voltei ao Capítulo I. Contava a história de uma menina que apesar da dolorosa perda dos pais, era um ser humano admirado pelo universo. Todos os dias com sua generosidade ela carregava pétalas de amor e espalhava no mundo.
Observei que a narrativa fluía com os acontecimentos da nossa vida. Parecia que estava falando da nossa família, mas não era. Tinha outros personagens, embora parte dos acontecimentos se misturavam.
Lembrei-me da metáfora de Fernando Pessoa utilizada no poema “Tenho dó das estrelas” para dizer que estava muito cansado e precisava dormir.
Fiquei pensando! Será se minha irmã estava mesmo contando a história vivenciada por nós, por isso utilizava metáforas na narrativa semelhante ao poeta.
Comecei a ler e não conseguia mais parar. Aquela história me comovia de tal forma que é até difícil extrair a delicadeza dos sentimentos daquele texto. De repente cheguei a ultima página, mas a trama não havia se fechado, parecia que a história estava incompleta. Imaginei – deve ter a parte II. Revirei novamente o colchão, e nada. Parti para as gavetas da cômoda da minha irmã e lá encontrei dois cadernos. Abri a primeira página e assim estava: O AMOR SUPERA TUDO (Volume II); no outro, O AMOR SUPERA TUDO (Volume III).
De posse dos dois volumes, pulsando de emoção, agora era correr contra o tempo. Eu parecia um maratonista no ramo de leitura. Percorria os capítulos em alta velocidade num ritmo acelerado. Maravilhado de saber que minha irmã tinha escrito tudo aquilo e ao mesmo tempo com medo de ser pego no flagra bisbilhotado as coisas dela.
Este mês de agosto fui a uma livraria aqui na minha cidade. Uma mulher me atendeu e perguntou - qual livro? Respondi “O amor supera tudo”, ela pediu pra acompanha-la até um computador que ajuda a localizar os livros do acervo da livraria, digitou o título, apertou enter, e nada!
Sei que alguns escritores optam pelo silêncio literário, por um tempo. A poeta mineira, Adélia Prado é um exemplo disso. Ela Ficou sete anos sem publicar livros. Será se minha irmã publicou o livro e a edição se esgotou rapidamente e ela não fez mais tiragens?
Desculpe-me desiludir vocês, sei que muitos iniciaram a leitura na expectativa de saber mais detalhes sobre o contexto da obra em si. Acontece que não sei se o livro foi lançado ou se ela pretende publicar um dia. Nesse caso, é melhor me resguardar, porque a revelação antecipada da obra cabe à autora, por isso vou parar por aqui.
Acho que as ideias já estão balançando para outro texto. Isso porque minha sobrinha chega neste mês de agosto de 2022. O título se chama “ Carta para Ana Júlia”, mas isso é assunto para outra crônica.
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